domingo, 29 de março de 2009

Cinema: O Estado das Coisas em Portugal!

excertos da entrevista de Paulo Branco no Correio da Manhã

Como está o estado actual do cinema em Portugal?

A época de ouro do cinema português, anos 80 e 90, quando apareceram pessoas como o Pedro Costa, o Manoel de Oliveira, o João César Monteiro, a Teresa Villaverde, o João Botelho, e hoje, a comunidade política e a comunicação social têm tendência a esquecer-se desse período que levou o cinema português além-fronteiras. A qualidade do cinema em Portugal só foi possível graças a uma estrutura que, mal ou bem, resistiu às mudanças de governo, às mudanças de ministros. Essas estrutura é que tem de ser reforçada e não questionada. O Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA), com as diversas denominações que teve ao longo dos tempos, foi o instrumento número um, que possibilitou ao cinema português ter aquela áurea enorme técnica.

Para si, o ICA foi então o grande impulsionador do cinema?
Exactamente. Fez aparecer poucos, mas alguns, produtores, muitos, e grandes realizadores e actores. Os grandes actores da televisão actual começaram no cinema. Rita Blanco, Bernardo Luís, Alexandra Lencastre, Margarida Vila-Nova... E o importante neste momento é não destruir esta base mas sim reforçá-la. E é preciso lembrar que nada disto foi feito com o orçamento geral do Estado, mas sim através da taxa de 4 por cento derivada da publicidade. Os contribuintes não tiveram participação e até deviam ter tido, como em tudo.

Então o que passa no cenário actual do cinema?
Há uma grande ignorância e novo-riquismo os decisores que estremeceram, nos últimos três anos, esta estrutura que é indispensável e devia ter mais fundos para além da taxa dos quatro porcento. Em vez de ter havido o reforço dos meios do ICA, houve um deslumbramento para caçar, a qualquer preço, espectadores. O grande cinema não pode ser feito com esse espírito. Mais do que isso, houve um desvio de uma lei que nos punha ao nível da Europa e que, de certa forma, obrigava qualquer operador audiovisual a investir em cinema e audiovisual. Isso foi transformado num projecto que só tem trazido a pior confusão e um grande oportunismo. É quase um caso de polícia.

Está a falar do Fundo de Investimento no Cinema e Audiovisual (FICA)?
Sim, é um discurso demagogo e aldrabão e uma caça ao dinheiro do Estado, através do Ministério de Economia. Este fundo é uma lei desviada dos contornos originais e que promete retornos impossíveis de obter. É um monstro, um aborto, que não tem nada a ver com critérios culturais. Mesmo que um filme faça 300 mil espectadores, o retorno ao produtor são 150 mil euros e os filmes são feitos com, pelo menos, um milhão e meio ou dois milhões de euros. Portanto não há retorno (como é regra para obtenção do fundo). A Lei que devia fomentar a cultura acabou por ser esquecida e desviada.
(...)
Os filmes apoiados pelo FICA não conseguem então cumprir a regra do retorno relativa a este fundo?
É uma profusão de audiovisual de baixa qualidade mas não consegue espectadores para dar retorno nem sequer a nível cultural. Só dá uma imagem do país inacreditável e ‘inexportável’.

Então acha que se devia abolir o FICA?
O FICA nunca devia ter existido. A única estrutura que devia gerir o audiovisual em Portugal era o ICA e sem permitir baixar a qualidade. Não sei quem vai querer comprar, lá fora, o ‘Equador’ e é inacreditável que o primeiro produto audiovisual sobre Salazar tenha sido aquilo (‘A Vida Privada de Salazar’). Estamos muito abaixo de Berlusconi. E isto tem sido feito com o beneplácito do próprio ministro da Cultura que diz que isto não tem nada a ver com ele e adoptou a posição de avestruz.

E o ICA serve os propósitos do cinema português?
Tenho muitas críticas ao funcionamento da instituição mas não ponho em causa a estrutura. Quero é o reforço da estrutura com um reforço de verbas e responsabilização na promoção e desenvolvimento da produção audiovisual, além da cinematográfica, e com critérios de qualidade. Deviam ser criadas condições para que o ICA funcionasse melhor: deixasse esta burocratização excessiva e reforçasse as suas receitas – até podia ser com o reforço de 1% do volume de negócios das televisões privadas –, ter uma maior preocupação na distribuição e exibição e uma transparência no apoio a festivais. E rever o incentivo a primeiras obras, assim é difícil surgirem novos realizadores...

Há novos talentos no cinema?
Eu fiz nascer muitos novos e bons realizadores mas só com 10 filmes por ano é muito difícil fazer surgir novos talentos. Ou se criam condições para mais filmes ou não só não surgirão novos como será difícil confirmar os que existem.

Concorreu nas duas edições (e únicas até à data) do seu Estoril Film Festival?
Sim, mas segundo o ICA o festival teria de existir há mais de três anos.

Só terá, eventualmente, apoio na quarta edição?
Mesmo aí já me disseram que atribuíram a maior parte das verbas, nos contratos-programa de três ou quatro anos.

Como vê esse facto?
Quem dirigia o ICA, muitas vezes, seguia directrizes, nem sempre muito claras, do Ministério da Cultura. Enquanto o ministério tinha condições, corria tudo bem...

Está a falar de que época no ministério, da de Manuel Maria Carrilho?
Até aos tempos dele. Desde então nenhum ministro se leva a sério. Era importante o ministério da Cultura ter uma parte, do orçamento geral do Estado para a Cultura. A partir do Manuel Maria Carrilho, tudo descarrilou. Durante esse período, havia pessoas mais ou menos qualificadas no ICA e uma preocupação e atenção por parte do ministério.

E agora...
A seguir a Carrilho, o ICA passou a ser um depósito de funcionários públicos, pessoas que desembarcaram ali por amizades políticas e sem nenhuma experiência no cinema. E os ministros deixaram essas pessoas ir gerindo a situação. Ultimamente, numa tentativa de criar uma maior transparência, houve uma burocratização kafkiana e começaram-se a criar regulamentos. Criou-se uma teia de regulamentações e uma forma incompreensível de eleger os júris e distribuir os apoios anacrónica e completamente errada, com um lavar das mãos dos ministros. Chegou-se a um ponto absurdo em que os funcionários têm um poder absoluto e inventaram regulamentos impraticáveis e agora dizem que já não os podem mudar...e foram eles que os criaram. Por exemplo, as curtas-metragens têm de ter até 90 minutos e as longas-metragens a partir dessa duração. E um dia eu comentei: ‘Mas há grandes obras-primas só como 70 ou 80 minutos, como é que fazemos?’ ‘Só tem de ampliar o genérico mais uns minutos, foi a resposta que me deram’...

Quem?
O Dr. Nuno Fonseca, que já não está na direcção. O caso de ‘Singularidades de Uma Rapariga Loira’, última obra de Manoel de Oliveira, tem 64 minutos é um caso fora-da-lei. Este é só um exemplo para se perceber o anacronismo dos regulamentos que foram inventados...

Mas considerando ‘Os Mistérios de Lisboa’, que o Paulo Branco quer produzir e filme com o qual se candidatou ao ICA, em que discordou do regulamento (ao ponto de interpor uma providência cautelar, entretanto dada como improcedente, e consequente recurso)?
Eles tentam objectivar situações difíceis de serem objectivas. E o ICA tem júris que não têm relação nenhuma com o cinema ou a produção de filmes. É muito grave que sejam essas pessoas que vão analisar quem deve ou não deve filmar. Neste caso, o que se passa é que é tudo objectivado. (...)