O ministro da cultura não deve ter uma politica de gosto
José António Pinto Ribeiro
ao Expresso em 12 de Julho de 2008.
José António Pinto Ribeiro
ao Expresso em 12 de Julho de 2008.
A Arte não pode ser adiada pelo peso morto do público...
Henri Matisse, 1946
Henri Matisse, 1946
Não, não se trata nem do caso Freeport, nem do caso Lena, nem sequer das casitas da Beira. O assunto é outro e para nós mais sério.
Estrearam-se nos últimos tempos nas salas portuguesas O Crime do Padre Amaro, Corrupção, Call Girl, A Arte de Roubar, Amália, o Filme, Second Life e nos écrans de televisão as super-produções Equador e A Vida Privada de Salazar.
O senhor ministro não tem gosto? Tem. É este !
Gosto que ficará também para sempre ligado a este governo do Partido Socialista.
O dinheiro que pagou estes produtos audiovisuais é maioritariamente dinheiro público vindo do Fundo de Investimentos para o Cinema e o Audiovisual – FICA ( 40% do total – IAPMEI, Estado, 30% ZON Lusomundo, dedutíveis nos impostos, portanto Estado, 6% RTP ainda Estado. Só 12% vindos da SIC e 12% da TVI são fundos privados ). Quer isto dizer que 76% do total são fundos públicos.
Estes “conteúdos” foram anunciados como produções de montantes financeiros elevados. Acrescente-se ainda o custo de dezenas de cópias, das gigantescas campanhas publicitárias (televisão, imprensa, outdoors, transportes públicos, etc.) que podem calcular-se em milhões de euros.
Sabemos o que nos vão responder: é capital para recuperar. Mas, em vez de nos mostrarem a relação entre os investimentos e as receitas, como fazem as revistas profissionais da indústria americana que tanto admiram ( Variety, Hollywood Report, etc. ), vão atirar-nos com o número de espectadores. Não admira ! Com 72 cópias em exibição simultânea e com uma brutal campanha de promoção qualquer produto deste género terá resultados semelhantes.
Mas alguma vez será recuperado o dinheiro investido?
Vamos à Matemática. Por exemplo : um grande êxito de público que atinja os 200 000 espectadores, para as contas serem simples, faz de receita bruta € 900 000 que são distribuídos do seguinte modo : € 540 000 para o exibidor (a sala), € 108 000 para o distribuidor e finalmente € 252 000 para o produtor. Os empreiteiros do audiovisual anunciaram o custo de cada um dos seus produtos com um valor médio acima de € 1 500 000, alguns mesmo muito acima. Magnífico embuste ! Todos sabem isto e fingem que não sabem.
Santa hipocrisia !
Se fossem fundos privados nada tínhamos a dizer, mas são dinheiros públicos, senhores !
Curiosa contradição : porque é que o Ministério da Cultura através da Direcção Geral das Artes se recusou até hoje a atribuir apoios financeiros comerciais a Filipe la Féria , uma das quais até se chamava Amália e decidiu apoiar com entusiasmo estes conteúdos audiovisuais ? O que é que se está a passar na politica cultural deste governo ?
Expliquem-nos !
E o mais grave é que esses fundos do Estado foram entregues a empreiteiros gananciosos e grosseiros que levaram as imagens e os sons ao grau zero da escrita. Já nem sequer é o saudosismo das comédias pequeno burguesas dos anos 30 e 40. É o regresso à humilhante decadência do cinema salazarista dos anos 50 e 60 do século vinte ( Sarilho de Fraldas, A Raça, Tarzan do 5º Esquerdo, O Amor desceu em Pára-quedas, Os Toiros de Mary Foster, Rapazes de Táxi, Sonhar é fácil, etc. ) agora actualizados pelas cores berrantes e as lantejoulas do audiovisual.
Há uma ideia forte por detrás desta ideologia : o desprezo pelo público, a certeza da sua estupidez natural. Roça o fascismo. Terão estes empreiteiros pequeno-burgueses a noção da doutrina que os habita ?
E no meio disto o que faz e o que diz o Ministro da Cultura ? Nada ! Lava as mãos como Pilatos.
Ele, que aceitou o mais vergonhoso orçamento para a Cultura, 0,4 % !!! ( A maioria dos países Europeus têm orçamentos para a Cultura de 1% ou mais ), diz que não é nada com ele e pensa nos modelos escandinavos.
Explicará este gosto pelo estrangeiro a contratação de um tal Martin Dale que há cerca de uma década foi o teórico responsável de uma patética empresa de conteúdos ( Conteúdos S.A. ) que felizmente não medrou entre nós. O rapaz, agora mais velho, volta à carga para estruturar uma indústria cinematográfica, o audiovisual e a nossa vida. Já chega ! Já demos !
Nunca vimos tamanha caldeirada ( paga por quem e com que fim ? ) nas doze páginas da revista Variety, distribuída no Festival de Berlim do corrente ano, pagas pelo Estado Português e assinadas maioritariamente por Martin Dale. Alguém nos acuda ! Oxalá !
Para ocultar o desespero e a desgraça da vida das pessoas deste país, reina a euforia e o riso alvar neste novo mundo do audiovisual. É verdade que há uns rabitos e umas mamitas e que descobriram a “coisa lésbica” como sinal de modernidade para relançar o machismo mais rasteiro.
As narrativas são rudimentares e comandadas pela identificação simplista apelando ao voyeurismo congénito do espectador, apregoando o triunfo de uma gramática primária: hipertrofia do grande plano, indigentes campos, contra-campos, movimentos de câmara que tentam desesperadamente tornar grandes coisas que são ninharias, iluminação uniforme e monótona empastelando tudo, incapacidade de pensar a relação entre a luz e a sombra. E os seres humanos que deviam habitar essas luzes e essas sombras aparecem despojados da sua dignidade, do seu sangue, da sua vida, transformados em apenas “mercadoria”, coisas a vender, “enxúndia”!
As televisões e o seu audiovisual criaram este olhar pacóvio, infantilizaram a espécie humana, mas de um modo sebento, untuoso, porco. Esta ideologia hedonista que se exibe continuamente nos programas de televisão ( concursos, jogos e até na informação ) chegou ao cinema português.
Não há quem tenha vergonha? Não há quem se escandalize?
Nós ! Nós temos vergonha. Nós escandalizamo-nos.
E o que é que o senhor Augusto Santos Silva, Ministro das Televisões e da propaganda deste governo que é “quien todo lo manda” nesta área, tem a dizer ? Nada ! Cala-se, porque “quién todo lo manda” são as televisões.
E no entanto quando era da oposição, declarava:
“Não aceitamos que a selecção dos apoiados caiba a uma oligarquia de gestores, não aceitamos a menorização de uma parte importantíssima da nossa criação contemporânea, que é o cinema português reconhecido e admirado em todo mundo."
Ou ainda:
“ Não pensamos, que compita ao Estado obrigar os investidores privados a investir, nem que se deva destruir a Cultura Cinematográfica que temos pela ilusão de uma grande produção de conteúdos ou de um cinema dito comercial para que o pais não tem escala nem o Ministério tem vocação.”
Que perda de memória ! Que tristeza !
...
Exigimos de uma vez por todas a separação total do cinema da ganga do audiovisual.
Exigimos a manutenção e o reforço da autonomia do Instituto do Cinema que deve voltar a designar-se Instituto Português do Cinema. ( Todos os grandes filmes portugueses foram a partir de 1974 assistidos financeiramente pelos fundos do Instituto e lembramos ao senhor Ministro da Cultura que nenhum deles foi produzido ou realizado por empreiteiros. )
Exigimos um Instituto que defenda e prolongue a tradição do novo no Cinema Português.
Exigimos regras transparentes e júris competentes para os concursos públicos. ( Saberão os portugueses que o nosso cinema não recebe um euro do orçamento geral do Estado ? )
Exigimos o aumento das dotações financeiras para o Instituto que se deverá reflectir num maior número de produções. Mais e sempre melhores filmes !
O Cinema Português não pode morrer. Se ele morrer a culpa é vossa, Sr. Ministro da Cultura, Sr. Ministro dos Assuntos Parlamentares, Sr. Primeiro Ministro. Haja respeito!
João Botelho, Alberto Seixas-Santos, José Nascimento,
Membros da Associação Portuguesa de Realizadores
in Publico - Espaço Público
23 de Fevereiro de 2009
Membros da Associação Portuguesa de Realizadores
in Publico - Espaço Público
23 de Fevereiro de 2009