segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Um grande e horrível crime - Isso é FICA - por Jorge Leitão Ramos

2009 teve alguns dos mais execráveis filmes portugueses de sempre.
Com dezanove longas-metragens em estreia nas salas, 2009 teve uma produtividade fantástica. Com Pedro Costa a tornar-se uma coqueluche internacional (retrospectivas na Tate Modern, em Londres e em Madrid, as principais revistas internacionais a dedicarem-lhe desusada atenção, edições em DVD em Espanha, Inglaterra, Estados Unidos, aplausos vigorosos em Cannes para "Ne Change Rien"), dir-se-ia que só temos motivos para regozijo. Com Oliveira, sempre, no primeiro plano das atenções dos meios intelectuais do cinema mundial (foi capa nos "Cahiers du Cinéma" e quinto entre os melhores filmes do ano na eleição pelos redactores da revista), será que nos podemos queixar? Com uma Palma de Ouro em Cannes no campo das curtas-metragens ("Arena", de João Salaviza), não é de acreditar no futuro da nossa cinematografia?
E, todavia, quando olho para o panorama dos dezanove filmes longos que os meus olhos viram no ano que ora se fina, lembro-me pouco de entusiasmos e muito de desgostos. Eu acho que o que se está a fazer no cinema português é mesmo um grande e horrível crime. Finalmente, pode-se avaliar o que o Fundo de Investimento para o Cinema e o Audiovisual (FICA) está a derramar. Lembram-se daquele filme que não sabia articular dois planos e que desconhecia por inteiro a gramática da linguagem fílmica ("Second Life")? Isso é FICA. E se soubermos que a empresa que o perpetrou já recebeu mais de cinco milhões de euros de financiamento - isso é FICA exponencialmente. Lembram-se de Salazar libidinoso nas teias de Soraia Chaves - com Diogo Morgado a fazer o papel mais ridículo da sua vida ("Salazar - A Vida Privada")? Isso é FICA. Lembram-se de Joaquim Leitão a perder-se nas teias do oportunismo numa fita com um argumento indigente? Isso é FICA, a abafar o único cineasta que não pertence à geração do Cinema Novo e que sabia fazer filmes comerciais com um toque de autorismo. E aquela coisa luso-qualquer-coisa com Romeu, Julieta e futebol de fazer corar qualquer um de vergonha ("Star Crossed")? Isso é FICA, a armar ao internacional... Com tudo isto, o ano saldou-se por uma misérrima colheita de espectadores - ou seja, os filmes para o mercado não serviram mercado algum. E, perante a debandada geral de espectadores que assola o cinema português, ninguém parece ter digna solução para mudar as coisas.
Assim sendo, eu acho que me quedo com o pouco que pude amar: o estremecimento de uma actriz-revelação num filme perturbantemente convulso - Margarida Carvalho no "Veneno Cura", de Raquel Freire (não era um grande filme, só tinha verdade a jorrar por todo o lado); Catarina Wallenstein no belíssimo "Um Amor de Perdição", de Mário Barroso, que bem merecia ter tido melhor sorte; o corajoso "Morrer como Um Homem", de João Pedro Rodrigues, a pôr em cena a identidade de género - um dos melhores filmes do ano; Rui Simões a filmar os que vivem nas margens da cidade - com os olhos secos e toda a perplexidade ("Ruas da Amargura"); Manuel Mozos cheio de autenticidade e ternura a falhar um filme ("4 Copas") - mas que bonito era aqui e ali; Fernando Lopes com humor no desespero ("Os Sorrisos do Destino"); a Balibar a cantar 'Johnny Guitar' no "Ne Change Rien". E disse.
Jorge Leitão Ramos