quarta-feira, 21 de julho de 2010

Estado do Cinema de Animação

1. Introdução
Perante o grave impasse que vive o cinema português com a actual paralisia do FICA, e devido à caótica situação financeira no ICA (recusando assinaturas de contratos homologados pela Ministra, atrasando pagamentos, e renegociando projectos já aprovados), os agentes da área da criação cinematográfica vêm sentindo urgência em realizar uma análise sobre o estado em que se encontram os parâmetros da sua actividade.
Por ser um dos sectores mais atingidos pelo não cumprimento do anteriormente referido, cabe uma palavra aos criadores do cinema de animação.
E apesar das atenções estarem momentaneamente direccionadas para questões urgentes para o cinema em geral, convém não esquecer do que vem sofrendo o sector da animação em particular.
Deste modo, alguns realizadores de cinema de animação entendem que chegou o momento de tomarem posição e desenvolverem acções em defesa dos seus interesses enquanto profissionais de cinema e artistas.

2. Um espaço conquistado
Em primeiro lugar destaque-se que, apesar de ser ainda restrita a nossa produção no campo do cinema de animação, com este parco volume o sector tem vindo a ganhar uma importância significativa nacional e internacionalmente - facto que se comprova pelos importantes prémios que veio arrecadando ao longo da década passada, e que contribuíram para a visibilidade exterior do cinema e da cultura portuguesa.
Apesar desses resultados, a verdade é que tal circunstância não se reflectiu em nada quanto à legítima expectativa de melhores condições de criação e produção, através de maiores apoios.

Terá sido por causa da progressiva visibilidade do cinema de animação que em 2001 e durante a vigência do ministro Carrilho (no enquadramento regulamentar dos concursos de apoio à produção do ICAM), que se estabeleceu devidamente o apoio ao cinema de animação, destinando anualmente uma verba significativa para curtas-metragens, séries e longas-metragens.
Todavia, e a partir daí, este propósito foi sendo sempre limitado, não se procedendo a um aumento gradual do montante dos subsídios: actualmente o cinema de animação está reduzido a cinco ou seis curtas metragens, tendendo a extinguir-se definitivamente.

3. Uma descida progressiva dos apoios
Se procedermos a uma comparação, em 2001 o cinema de animação usufruía de apoio anual de 130.000 contos para longas-metragens (complementados por acordo a 20% pela RTP), de apoio anual a duas séries no valor de 40.000 contos cada (com aquela mesma percentagem de participação pela RTP em cada projecto) e com 80.000 contos para curtas-metragens até 26 minutos (com a mesma participação da RTP).
Verificamos que desta política de financiamento, e que dirigia 248.000 contos anuais para o sector (correspondendo a 1.240.000 euros na moeda corrente, entre ICAM e RTP), a cota foi gradualmente reduzida até aos actuais 500.000 euros anuais para curtas-metragens, tendo sido retiradas dos concursos as séries e longas-metragens, formatos invalidados ao serem adstritos aos apoios do FICA, sem qualquer consulta ao sector.

4. A suspensão do FICA
O FICA, cuja política de formação e filosofia de acção já está bem demonstrado ter sido um falhanço, se não um profundo logro para os parâmetros de desenvolvimento do cinema português, atribuiu inicialmente 16 milhões de euros para a animação (entre 10 a 15% do seu investimento).
No entanto, ao longo dos três anos de actividade apenas 80.000 euros foram adjudicados à animação, verba essa que não chegou a ser contratualizada, devido à recente paralisação do FICA.
Desde o seu inicio o FICA não utiliza critérios de avaliação que definam o que é um projecto de animação, e poucos autores, realizadores, produtores têm acesso aos instrumentos do que se transformou num embuste: O FICA não serve a animação nacional, e muito menos a encaminha para um desenvolvimento que nos permita ter uma pequena indústria.
Aliás a palavra animação é utilizada de forma perigosamente vaga nos regulamentos do FICA, abrangendo jogos interactivos, plataformas multimédia, conteúdos televisivos e por fim o próprio cinema de animação.
Deste modo, em vez de se adjudicarem financiamentos a projectos sustentados por equipas creditadas, dando azo ao florescimento de uma indústria de qualidade, sobretudo nacional, as candidaturas do FICA permitem qualquer tipo de “co-produção”, ou seja o aparecimento de empresas criadas com o único intuito de sacarem fundos e subcontratarem serviços na Ásia, ou na América Latina.

5- O ICA, única instituição de apoio ao cinema
É assim no ICA, e não no FICA que se concentram agora todas as atenções, com o receio do seu desaparecimento ou fusão numa outra entidade, de características ainda mais obtusas.
Se ao nível da animação, os fundos do ICA foram já anteriormente canalizados para produções supostamente industriais (longas e séries), e que se verificaram serem mal geridas (algumas delas feitas no estrangeiro e abandonando os técnicos portugueses e parte dos seus autores), existem muitas outras questões que não se restringem a dados puramente financeiros.
Basta verificar várias produções financiadas pelo ICA para constatarmos que foram tecnicamente realizadas sem qualquer tipo de meios, com objectivos artísticos longe dos indicados nos dossiers dos projectos aprovados, e muito abaixo do custo previsto tido como referente para a adjudicação da obra.
Actualmente qualquer projecto pode ser aprovado com uma técnica específica em animação, terminando com outra muito mais económica, quando não colmatada com extractos em imagem real, para compor o orçamento.
A par deste género de manobras, muitos projectos são propostos tendo como realizadores, ilustradores ou grafistas da nossa praça, com o fito de justificar curriculos e pontuações. Sem qualquer tipo de formação, estes ilustradores acabam por deixar nas mãos das produção a direcção das suas obras, limitando-se a seguir de longe o andamento do trabalho.

6- O futuro do ICA e a sua missão para com os autores
Com a agonia inequívoca do FICA, pelo menos nos tempos que correm, teme-se que os parcos financiamentos do ICA destinados à animação, venham não só a ficar por valores simbólicos (se tivermos em linha de conta os cortes agora anunciados pela Ministra), como tombarem sob o apetite dos fautores desse cinema «industrial» que não liga a meios para conseguir os seus fins: ganhar uma percentagem sobre os apoios, relegando para um plano secundário a experiência artística do nosso cinema de animação, que se deve a meia dúzia de autores e realizadores sobejamente premiados.

O ICA deve apoiar a criatividade e a atitude cultural cinematográfica, não preferencialmente a industrialização ou as estruturas existentes.
O que deve distinguir o apoio do ICA não deve ser o formato (curta-metragem, longa-metragem ou série) mas sim a característica autoral de cada projecto, nas suas vertentes artística e cultural, dando primazia aos projectos mais originais.
No que respeita ao cinema de animação, deve desenvolver uma produção regular assente em critérios de inovação, qualidade e diversidade de formatos, evitando a redução do apoio financeiro, como tem vindo a acontecer unilateralmente mesmo antes da actual crise financeira.

Acresce ainda que os procedimentos actuais do ICA, ao nível dos seus concursos, constituem um engano que deve ser discutido. Segundo o presente regulamento, cada projecto é submetido ao tradicional júri de selecção, de cujo trabalho resultam as obras a apoiar.
Todavia, agora cada produtor é levado a negociar com um técnico não necessariamente especializado que, a posteriori, renegocia os valores constantes do dossier de projecto.
Abordada individualmente, cada produtora fica perante o ICA numa relação de força desigual, fragilizada: concorre-se consoante um valor justificado no caderno de encargos, que é aprovado por decisão do júri, mas ou se leva o que o ICA propõe posteriormente, ou se desiste.
Eis um sistema absurdo que desenvolve um relacionamento pouco claro, facilitando faltas de seriedade e sugerindo indirectamente que produtores proponentes inflacionem os orçamentos com vista à posterior negociação.

7. Revitalizar o ensino
A expansão mediática do cinema de animação português, através de festivais e mostras, e sobretudo por via do trabalho da Agência de Curtas Metragens de Vila do Conde, deu grande visibilidade a este sector - de notar que no catálogo publicado por esta Agência em 2010, sete curtas de animação encontram-se à cabeça das obras distribuídas nacional e internacionalmente.
Por estes e outros factores cresceu nos últimos anos o ensino da animação, mas a verdade é que nas quatorze universidades e institutos politécnicos que leccionam a área, não há uma única licenciatura própria ao cinema de animação.
Deste modo e ao nível dos estabelecimentos superiores de ensino, o cinema de animação quase nunca é leccionado enquanto linguagem e forma expressiva, mas antes na maior parte dos casos como complemento ao multimédia ou ao audiovisual, enquanto forma de colmatar o campo do efeito especial, do jogo interactivo, do grafismo computadorizado, do écran de telemóvel, ou de animações para a internet.
Trata-se acima de tudo um ensino dirigido a um mercado global , pouco interessado no sector do cinema, ministrado em inúmeros casos por professores sem formação específica, simples habilidosos ou técnicos informáticos.
Não havendo formação de qualidade equacionada para as necessidades do desenvolvimento do cinema de animação, quem quer profissionalizar-se tem a opção de cursos pouco profundos, ou de arriscar uma formação cara além fronteiras. Assim, urge um debate amplo entre as estruturas interessadas no âmbito da profissão, para que o esforço de formação possa ser re-equilibrado, nomeadamente com plataformas de colaboração entre instituições portuguesas/internacionais, facultando assim o prosseguimento de estudos aos interessados no cinema de animação.

8. Os representantes do sector
A desorganização campeia entre nós, com uma associação de produtores pouco operante e mobilizadora, e que de forma deficitária, esgrima com a administração do ICA tópicos percentuais assentes na sua própria subsistência, suprimindo muitas outras questões colaterais, e que afectam todo o sector.
A par disso um espaço inerte, a Casa da Animação, apoiada pelo ICA com um subsídio anual, limita-se a parcas iniciativas, que em nada ou quase nada justificam a sua missão: um motor capaz de congregar esforços no campo da formação, da divulgação e da defesa do cinema de animação em todo o pais.
O conhecimento da animação portuguesa em termos institucionais, concentra-se em poucas pessoas, mais ávidas em se fazerem conhecer, do que em operar no sentido de uma evolução do sector. Fazem-no por necessidade própria e para não perderem a crista da onda.
Esta situação de esquecimento de todos os outros agentes no precário tecido da animação portuguesa, leva a que as condições de trabalho sejam péssimas, miseráveis mesmo, criando-se um clima propenso ao estágio não remunerado, ou ao pagamento assim “que venha a próxima parcela do ICA”.
Integridade, respeito, honestidade e profissionalismo são características que muitos consideram serem raras no espaço das produtoras de maior capacidade de gestão, fazendo falta uma renovação do tecido produtivo no nosso sector e uma alteração radical das atitudes de relacionamento entre empregadores e empregados, entre criadores e gestores dos dinheiros atribuídos a cada projecto.

9.Contratos e compromissos
Os contratos elaborados entre autores e produtores são actualmente documentos básicos, o mais das vezes redigidos para responder tão só a compromissos exigidos por instituições como o ICA ou a RTP quando das candidaturas aos concursos.
Os contratos definitivos surgem apenas após a aprovação do subsídio, confrontando os autores com novas e desvantajosas condições dos produtores (financeiras e outras), em suma a lei do “pegar ou largar”.
Assim, e no caso específico da realização, tornam-se necessários contratos que respondam a todos os direitos e deveres de forma pormenorizada, incluindo direitos directos e conexos, estabelecendo de forma precisa qual o trabalho que cabe ao realizador nas diferentes fases de produção, as condições necessárias à concretização do projecto e uma orçamentação baseada em factores objectivos e inerentes à realização de cada obra.
Também as opções que de alguma forma subvertam o espírito da obra devem ter a aprovação do realizador e serem acauteladas no contrato.

Outro ponto importante é o investimento inicial dos realizadores na preparação de projectos a entregar ao ICA, com vista à obtenção de apoio financeiro: na maior parte dos casos tudo ou quase tudo é preparado pelo realizador, limitando-se o produtor a preencher um orçamento secreto e a enviar o dossier respectivo ao ICA. Trata-se de um risco que deveria ser remunerado pelo produtor (parte interessada no processo), que com a desculpa do “estamos todos no mesmo barco”, se furta a este tipo de pagamentos.
De notar que antes e durante o desenvolvimento das obras, e por falta de equipas adequadas, o realizador é autor do conceito, do argumento, da realização, do grafismo, das personagens, da direcção da animação, da animação, ou mesmo da produção executiva. Se é verdade que algumas destas funções são remuneradas, a maior parte não o são.
A situação torna-se deste modo insustentável sob o ponto de vista financeiro e logístico para os realizadores, sendo normal perguntar porque existem produtoras, ou se não seria mais justo estudar novas formas de contratualizar os projectos directamente com os seus autores.

Para além destes factores, a abdicação contratual dos direitos autorais ligados à exploração fílmica em benefício do produtor, deveria estabelecer-se com uma percentagem para o realizador.
Para finalizar, assim que cada obra fosse terminada, uma cópia e o depósito de demais materiais deveria ser feito pelo produtor no ANIM, para defesa do material criativo, património indissociável do conjunto da cinematografia nacional.
E observando alguns casos passados, em casos de alienação de propriedade por parte da produtora, o autor deveria ter preferência sob a sua aquisição, e percentagem na sua eventual venda a terceiros, tal devendo figurar no documento contratual.

10. Conclusões
O nosso trabalho deve ser considerado no domínio da actividade artística inerente a uma estrutura com foros de indústria por via da sua especificidade, não mais do que isso. Por tal motivo o sector tem que encontrar fórmulas de criação de um mercado estável, seja através dos meios televisivos, públicos ou privados, seja com outros parceiros ou outras vias de programação. Sem esse mercado definido nunca poderá haver a tão propagada “indústria” com que algumas entidades oficiais gostam de argumentar. Ora, como nem todo o mercado europeu chega para sustentar essa famosa indústria de que tantos falam tão agilmente, então é lógico e lúcido o argumento do «proteccionismo» à divulgação da produção nacional obrigada a percentagens significativas nos quadros diversos da programação. No fim de contas, o sector terá que combater até beneficiar de um política cultural que actue mais do que fale, e que leve a sério este segmento da criação artística nacional.

O cinema de animação português está numa encruzilhada e tem que decidir qual o caminho que vai tomar: ou aposta no mito dessa indústria inexistente, que não será nem estável nem competitiva com os mercados internacionais, ou aposta na sua formação profissional como forma de desenvolvimento de um projecto escorado na diferença, na originalidade, na qualidade, e que possa produzir obras de referência e contribuir para assegurar um verdadeiro cinema de animação português, elaborado em bases sustentadas.
Este problema não pode ser desencadeado nem decidido sem o ponto de vista e a acção directa dos técnicos e criadores do sector. E os realizadores têm, nisso, um papel fundamental a desempenhar.