terça-feira, 23 de março de 2004

A APR e A LEI DO CINEMA (23 de Março de 2004)

PARECER DA ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE REALIZADORES
SOBRE A PROPOSTA DA LEI DAS ARTES CINEMATOGRÁFICAS
E DO AUDIOVISUAL
Março de 2004

A Associação Portuguesa de Realizadores reconhece nesta Proposta de Lei das Artes Cinematográficas um documento bem mais auspicioso para o cinema português do que o eram os anteriores anteprojecto e projecto. Congratula-se, em particular, pelo enquadramento que lhe é dado pelo preâmbulo “Explicação de Motivos” onde é reconhecida a importância e o prestígio do cinema português e se afirma que “o Estado deve por isso manter meios e estruturas que permitam afirmações culturais e artísticas diversas e inequívocas, continuando a apoiar aqueles que, com os seus filmes, projectam e projectaram a cultura portuguesa e o nome de Portugal, interna e externamente”. Foi esta identidade do cinema português que a Associação Portuguesa de Realizadores sempre defendeu, foi ela também que nos motivou na série de propostas de alteração ao projecto de Lei que nos foi apresentado, não podendo por isso senão saudar que ela se encontre agora consignada como um dos princípios orientadores da nova Lei do Cinema.

De igual modo, a Associação Portuguesa de Realizadores encara como positivo o alargamento das fontes de financiamento do cinema português – com as novas taxas sobre as receitas provenientes da distribuição de cinema e sobre a prestação de serviços dos operadores de televisão com serviços de acesso condicionado -, o desaparecimento do texto da Lei da plenipotenciária Comissão Técnica, a nova redacção dada aos artigos 8º e 9º , que norteando os diferentes programas de financiamento, favorecem a diversidade dos modos de produção, a pluralidade dos tipos, géneros e formatos de filmes (ficção, documentário, curtas-metragens, cinema de animação) e uma maior objectividade e transparência nos processos de selecção dos respectivos projectos.

A Associação Portuguesa de Realizadores regista e lamenta que a Lei seja pouco ou nada interventora sobre o mercado, continuando a admitir que distribuidores e exibidores que de portugueses só têm o nome, continuem a desempenhar o papel de correias de transmissão do cinema e da cultura americana sem que sobre eles penda o verdadeiro ónus dessa actividade de sabotagem da imensa diversidade cultural e nacional do cinema a que, por causa deles, os portugueses nunca terão acesso.
A actividade da distribuição e da exibição em Portugal tem sido pautada pelo desrespeito absoluto da lei da concorrência e pela sangria cultural e financeira do país, transformando a paisagem cinematográfica portuguesa numa espécie de base das Lajes, monolítica e repetitiva, onde aterram todos os dias os mesmos bombardeiros “culturais” americanos, mas sem qualquer espécie de contrapartida à altura do luxo de tal actividade, tanto para o cinema como, em geral, para toda a cultura portuguesa.
Imaginar que o branqueamento desta situação – culturalmente criminosa - se resolve com uma mísera taxa de 2%, deixando que todos os dias das bilheteiras do país partam para a América 60% das suas receitas e uma parte substancial da mentalidade e do imaginário português é uma ingenuidade que revela a fraqueza do Estado na defesa do seu melhor património: os portugueses do presente e os portugueses do futuro.

A Associação Portuguesa de Realizadores lamenta, igualmente, que o texto da Lei mantenha, apesar das distinções feitas no artigo 2º, uma perniciosa confusão entre o cinema e o audiovisual. O próprio intitulado da Lei – Lei das Artes Cinematográficas e do Audiovisual – anuncia um paradoxo (haverá mais do que uma arte do cinema ?) ou um tremendo equívoco (o de supor a existência de uma arte do audiovisual, onde, aí sim, apenas existe uma indústria). Consideramos que este clima é malsão e prejudicial a qualquer dessas actividades. Por isso, defendemos – no próprio espírito da Lei e dos seus princípios - que os futuros Decretos-Lei regulamentares devem promover a distinção sistemática entre o cinema e o audiovisual, com fundos próprios e regras próprias.
Que haja trocas e eventuais partilhas de interesse entre o cinema e a televisão não é novidade para ninguém. Por isso defendemos que quanto mais diferentes e libertas forem uma da outra, mais produtivas, interessantes e enriquecedoras serão essas trocas. O cinema é uma projecção na noite, na sala escura, um espectáculo público; o audiovisual e a televisão que o suporta é a redução diurna do mundo e do sonho, a programação doméstica, a ditadura da publicidade servida a domicílio.
A Associação Portuguesa de Realizadores deseja por isso que os novos regulamentos clarifiquem os propósitos da criação do Fundo de Investimento, para que, a coberto da natureza cultural do cinema, os eventuais meios desse Fundo, não venham a servir, na realidade, para o Estado financiar os défices das televisões privadas e a sua crónica incapacidade de produção. Para a Associação Portuguesa de Realizadores, esse Fundo deveria garantir, exclusivamente, os meios para apoiar os programas plurianuais, no respeito pelo que se encontra consignado no artigo 8º (diversidade de obras e de produtores e a sua independência face aos interesses económicos dos privados).
Achamos que sobre a matéria regulamentar do Fundo muito haverá que fazer, em particular para não envolver o Estado, directa ou indirectamente, em negócios comerciais, como já no passado foi tentado com a famigerada e escandalosa “indústria de conteúdos”. Neste ponto, torna-se fina – perigosamente fina - a diferença entre a cadeia de valor de que alguns falam e os valores da cadeia de que todos, seguramente, então falaremos.

A Associação Portuguesa de Realizadores sublinha que, no seu entender, alguns dos princípios norteadores desta Lei determinam claramente um enquadramento para os subsequentes decretos-lei regulamentares. Citando o Artigo 3º (Objectivos):
“O Estado apoia a criação, a produção, a distribuição, a exibição, a difusão e a promoção cinematográfica e audiovisual enquanto instrumentos de desenvolvimento integral da pessoa humana, de cultura, afirmação da identidade nacional, protecção da língua e valorização da imagem de Portugal no mundo”.
Sendo este o espírito da Lei, os decretos regulamentares devem garantir a isenção do Estado, através da existência de um Instituto com autonomia administrativa e financeira, a liberdade da criação artística, concursos públicos com regras claras e previamente definidas, a diversidade das obras, o aumento progressivo do número de filmes, a promoção nacional e internacional do cinema português, uma administração empenhada e esclarecida, que defenda, acima de tudo, o cinema que é feito em Portugal.
A Associação Portuguesa de Realizadores reafirma, nesta ocasião, as medidas que propôs na formulação do seu programa mínimo, do qual não abdica e cuja justeza e seriedade foram subscritas pelos 67 cineastas portugueses que são os seus associados.

PEQUENA NOTA SOBRE ARTE E INDÚSTRIA

Que fique assente de uma vez por todas que a particularidade do cinema português, pelas suas condições de produção e mercado, levou a que no “negócio” do cinema, cuja montagem alguns defendem, quanto maior for o investimento num único filme, maior será o prejuízo que ele causa. 100 mil espectadores em Portugal representam de receita ao produtor menos de 100 mil euros, se o distribuidor e o exibidor não lhos engolirem, entretanto, nas famosas contas de lançamento. Quer isto dizer que um filme que custe 750 mil euros precisa para pagar os seus custos, de, pelo menos, 750 mil espectadores. Um filme que custe 3 milhões de euros (e há exemplos recentes desta megalomania) precisará, para não perder dinheiro, de, pelo menos, 3 milhões de espectadores. Nunca nenhum filme português obteve tais resultados. A verdade é que nenhum filme português gerará qualquer tipo de riqueza, para lá da arte que transporta, que é digna, respeitada e, por isso mesmo, distinguida, como arte maior do nosso tempo. Por isso, a razão de existência do cinema português nunca poderá estar ligada ao negócio do dinheiro. Toda esta ganância – a que alguns chamam agora “indústria do cinema” (já lhe chamaram “audiovisual” e tantas outras coisas) - assenta, como se vê, num tremendo embuste.
A Associação Portuguesa de Realizadores – e esta Lei – defendem que o cinema português deve ser cada vez mais diverso, concretizado num progressivo aumento do número de filmes – filmes diferentes, livres e originais -, e não na concentração de todos os meios num filme financeiramente suicidário; e que, ainda por cima, não será mais do que um sucedâneo barato de um qualquer produto industrial americano que custa 20, 50 ou 100 milhões de euros. Em nome de quê, pergunta-se, tamanha irrazoabilidade ? Embora o mais útil mesmo fosse perguntar – agora como no passado - em nome de quem e para quem ?